Carta para Adélia Prado
- Armazém na Estrada
- 10 de out. de 2021
- 3 min de leitura
um ensaio por Chris Resplande

Goiânia, 30 de setembro de 2021.
Adélia,
Esta é uma carta de agradecimento. Ensaio há anos para escrevê-la; vontade que permanece medo que se renova, pois a cada leitura, em cada poema, é uma sensação de alma exposta, espelho de sentimentos escondidos que revelam o que eu só desconfio, às vezes.
Nasci em Goiânia, terra de planuras sem fim, o que marcou minha existência; por não ter um morrinho para esconder as angústias, fui obrigada a procurar horizontes abertos e nesta procura a poesia foi o “sinal luminoso na brutalidade das coisas”.
Sou neta e filha de mineiros, que, além da existência, marcou minha essência. Minas é o mundo e é o particular; a quietude, a mística, mas também a prosa, o encontro. Minha avó mineira era o mundo, tudo nela era uma comunhão de coisas espantosas, nunca uma dualidade: o bandolim, a vitrola, a poesia, o remédio caseiro, o bate-boca no coral da paróquia, o chá de canela com uma cachacinha, a fala aberta, a coragem. Pela janela, às escondidas, dava-me o polvilho escaldado para as quitandas... “Se for isso o céu, está perfeito”. Procurei em mim vestígios dessa mulher e a coragem para a carta começou a cutucar e a crescer.
A vida requer coragem... para uma simples carta? Perdoe-me, mas não porque é para você, a poeta lírica, bíblica, existencial, como diz Drummond. Você é de casa, entrou, tomou um café; de você não tenho medo algum. O medo é de mim. Porque escrever é mostrar a alma, é zona abissal a que só eu tenho acesso. É oficio que nunca quis, Deus me livre! É muita intimidade! E a escrita impõe um só caminho, ser absolutamente transparente. Ah, você já disse isso: “só vejo dois caminhos, ou viro doida ou santa”...
Meu recato me impede. Porque erro tanto; sou tão frágil e finjo-me forte; vaidosa e finjo-me humilde, e oscilo entre coisa e outra; faço-me de boba, faço pecados. Tratam-me por fortaleza quando tenho é medo e a distância entre pensamento e fala se estabelece. Mas há um chamamento, pois “para o desejo do meu coração, o mar é uma gota”.
Sempre me achei menina; demorei a me perceber adulta e tomei um susto danado. E olha que não faz muito tempo! Uma menina que espia tudo, curiosa, os olhinhos vivos... e que sente que há algo muito maior..., mas só percebi, de fato, a partir de sua poesia; ela me consolou! É verdade, há mesmo, o mundo é muito maior! Olho pelo buraco da fechadura e vejo a vida; aquela sala (ou quarto) que só alcanço uma pequenina parte, mas o fio de luz e cor para além do que os olhinhos alcançam é suficiente para fazer-me sonhar... há muito mais a descobrir.
E eu, curiosa de perguntas infinitas, cavo meio tonta resquícios de tudo o que fui. Não para saudades, mas para saber o que fazer hoje. Porque a sua poesia tem este sentido, o de pensar de mim para além, porém mais ainda para meu íntimo. Deixar vir à tona emoções, saudades, coisas fugidias, momentos que tento alcançar, reviver, entender. Fico como correndo atrás da sombra de uma borboleta, algo vem até a garganta e engulo, com olhos cheios de água. Fico quietinha, absorta de alegria e deslumbramento. Como pode ser lindo assim?
Você faz do simples, do comum da vida, o universal. Das coisas miúdas, próximas, trata do Homem. Todo este sentir a partir da sua poesia invade-me de tal modo que “meu coração vai desdobrando os panos, se alargando aquecido, dando a volta ao mundo”. Em minha pequenez compreendo tão profundamente que emociono e choro.
Ah! E o seu homem universal? A quem amo “com a memória, imperecível”. Sonho com ele, Adélia, caso-me com ele de véu e grinalda, entoando o Glória a Deus nas alturas e dou para ele comer “bolo de noiva, puro açúcar, puro amor carnal disfarçado de corações e sininhos”. Vou cozinhar para ele e cantar. Vou “ajudar a limpar os peixes” e “deixar o tacho no fogão com água quente”. Ao deitar-me com ele, “salvador do meu corpo”, com “um apetite de desespero” vou rezar, agradecida.
Sou muito grata a Deus, de quem não tenho medo algum, pois é um Deus que chama para o vôo, um quebrador de gaiolas. Ele me põe no colo, ri das minhas artes e diz que tem muita saudade de quando era menino.
Sou grata a você, que põe no colo minhas dores e esperanças, ri das minhas bobeirinhas, acha muita graça das tolices que penso e da minha mania de espantar com tudo que é bonito. Agradeço porque entendi que “minha enormíssima paciência de ficar à toa, só pensando, pensando e sentindo” é o que tenho de melhor.
Obrigada, obrigada!
Chris Resplande
Chris Resplande é poeta de Goiânia.
Publica seus poemas na página @asletrasdachris, no instagram.
Promove encontros poéticos em parceria com o
Museu Antropológico da UFG e o cineclube Imigraçâo.