por Lodônio de Poiri
(ou A Lenda das Curas)
Ininterruptas;
soberanas foram as chuvas.
Quando sol e lua
retornaram aos olhos,
soou a trombeta na montanha.
Os povoados do vale,
como filhotes ao ninho,
assolados foram, de súbito,
pelo desejo em romper
o isolamento.
Ainda havia o medo.
Ainda rondavam aflições.
Ainda ardia a dúvida.
Ainda ruminavam ânsias.
Entretanto, a trombeta soou na montanha.
Enquanto nos povoados,
receosas eram as portas...
Na chácara do sopé,
romaria de animais
foi contemplar o cume.
Aflita ficou a única humana.
Todos sabiam da trombeta.
Todos lembravam das décadas.
Todos sabiam das pestes antigas.
Todos lembravam do eremita.
Quando a história virou lenda,
gerações produziram arte.
Mas ninguém ousaria
supor a descida.
"Se a trombeta soou,
o eremita fora encontrado morto."
"Se ele próprio fez soar,
quão relevante motivo!?"
Na ausência de corpos,
flamejavam perguntas nos infectos vilarejos.
Na romaria, da aflita ecoa
voz que vislumbra
o eremita descer a montanha:
Por quê? Se as flores seguem murchas.
Para quê? Se os frutos seguem pecos.
As dores não surpreendem a mata.
São águas apodrecidas entre festas;
São adubos forjados em mortes.
Por que abandonaste a montanha?
"O relógio nunca para.
Mesmo no cume. Nem sei
se o relógio existe,
se as dores persistem,
se o vírus resiste,
que os ventos hesitem,
ah… sensação incômoda
de transformação: bebi
todas as frações do tempo
e almejo um milésimo de segundo…
para ficar bem.
Seguem valiosas todas as cirandas,
e os jogos e as celebrações,
e os lares e as orações,
e os trabalhos e as privações,
e toda plêiade de criações.
Porém,
condenada seja minha heresia,
nem sempre há motivos históricos,
nem sempre há objetivos ecológicos,
nem sempre uma fagulha divina
brindará nossos passos:
no cume os olhos são vãos,
mais valia uma cegueira;
Quão leviano seja,
o eremita desce a montanha
apenas
para te ver! "
Lodônio de Poiri é poeta e escritor. Um epicurista anarquista e vice-versa
Yorumlar